A GROSSEIRA SUPERSTIÇÃO que tem acompanhado o uso de relíquias revela a decepção e inconsistência com as quais o romanismo tem sido assolado por séculos. Entre as relíquias mais altamente veneradas tem havido pedaços da “verdadeira cruz”. Tantos desses foram espalhados através da Europa e outras partes do mundo que Calvino disse certa vez que se todos os pedaços fossem reunidos, eles formariam uma boa carga de navio; ainda assim, a cruz foi levada por uma só pessoa. Devemos crer que esses pedaços se multiplicaram miraculosamente da mesma maneira quando Jesus abençoou os pães e os peixes? Esta foi aparentemente a crença de São Paulino que falou da “reintegração da Cruz, ou seja, que ela jamais diminuiu de tamanho, a despeito de quantos pedaços fossem tirados dela”.
O notável reformador, João Calvino (1509-1564), mencionou a inconsistência de várias relíquias do seu dia. Várias igrejas diziam que possuíam a coroa de espinhos; outras as talhas usadas por Jesus no milagre de Cana. Um pouco do vinho podia ser achado em Orleans. A respeito de um pedaço de peixe frito que Pedro ofereceu a Jesus, Calvino disse: “Ele deve ter sido maravilhosamente bem salgado, se tinha de ser conservado por tão longa série de eras”. O berço de Jesus era exibido para veneração cada véspera de Natal na igreja de Santa Maria Maior em Roma. Várias igrejas afirmavam que tinham as fraldas de Jesus. A igreja de São Tiago, em Roma, apresentava o altar no qual Jesus foi colocado quando foi apresentado no templo. Até mesmo a pele do prepúcio (de sua circuncisão) era mostrada pelos monges de Charroux, que, como prova de sua autenticidade, declaravam que havia derramado gotas de sangue. Várias igrejas afirmavam que possuíam o ´santo prepúcio´, incluindo uma igreja em Coulombs, França, a Igreja de São João em Roma, e a Igreja de Puy em Velay.
Outras relíquias incluem as ferramentas de carpinteiro de José, ossos do jumentinho no qual Jesus cavalgou entrando em Jerusalém, o cálice usado na Última Ceia, a bolsa vazia de Judas, a bacia de Pilatos, o manto de púrpura lançado sobre Jesus pelos soldados que zombavam, a esponja levantada por ele na cruz, cravos da cruz, fios de cabelos da virgem Maria (alguns castanhos, alguns louros, alguns ruivos, e alguns pretos), suas saias, seu anel de casamento, sandálias, véu, e até mesmo a mamadeira de Jesus.
De acordo com a crença católica, o corpo de Maria foi tomado para o céu. Porém, várias diferentes igrejas na Europa reclamam ter o corpo da mãe de Maria, muito embora nada saibamos a respeito dela e ela nem mesmo recebeu o nome de “SantAna” até há poucos séculos atrás! Ainda mais difícil é uma história a respeito da casa de Maria. Os católicos acreditam que a casa na qual Maria viveu em Nazaré está agora na cidadezinha de Loreto, na Itália, tendo sido transportada para lê pelos anjos.
A The Catholic Encyclopedia diz: “Desde o século quinze, e possivelmente até antes disto, a “Santa Casa” de Loreto tem sido enumerada entre os mais famosos santuários da Itália... O interior mede somente 9,40m por 3,90m. Um altar fica numa extremidade abaixo de uma estátua enegrecida pelo tempo, da Virgem Mãe e seu Divino Infante... digna de veneração em todo o mundo, por causa dos divinos mistérios realizados nela... Foi aqui que a santíssima Maria, Mãe de Deus, nasceu; foi aqui que ela foi saudada pelo Anjo; foi aqui que o Verbo eterno foi feito Carne. Os anjos transportaram esta Casa da Palestina para a cidadezinha de... no ano da salvação de 1291 do pontificado de Nicolau IV. Três anos depois, no princípio do pontificado de Bonifácio VIII, ela foi levada novamente pelo ministério dos anjos e foi colocada em um bosque... onde tendo mudado sua estação três vezes no decorrer de um ano, completamente, pela vontade de Deus ela tomou sua posição permanente neste local... Que as tradições proclamadas assim, de maneira rude, para o mundo tem sido plenamente sancionadas pela Santa Sé, nem por um momento pode permanecer em dúvida. Mais de quarenta e sete papas tem de várias maneiras prestado homenagem ao santuário, e um imenso número de Bulas e Breves proclama sem qualquer dúvida a identidade da Santa Casa de Loreto com a da Santa Casa de Nazaré”.
A veneração de corpos mortos de mártires foi ordenada pelo Concílio de Trento, o Concílio que também condenou aqueles que não acreditavam nas relíquias: “Os santos corpos dos santos mártires... devem ser venerados pelos fiéis, pois através desses corpos muitos benefícios são derramados por Deus sobre os homens, de modo que, aqueles que afirmam que veneração e honra não são devidas às relíquias dos santos... devem ser completamente condenados, como a Igreja há muito os tem condenado e ainda os condena”. Desde que se acreditava que “muitos benefícios” advinham dos ossos de homens mortos, a venda de corpos e ossos tornou-se um grande negócio.
Em torno de 750, longas filas de carroções constantemente vinham para Roma, trazendo imensas quantidades de crânios e esqueletos que eram classificados, etiquetados, e vendidos pelos papas. Sepulturas eram violadas durante a noite e túmulos nas igrejas eram vigiados por homens armados. “Roma”, diz Gregorovius, “era como um cemitério mal-cheiroso, no qual hienas uivavam e brigavam, enquanto cavavam avidamente à procura de cadáveres”. Existe na Igreja de São Praxedes uma placa de mármore a qual afirma que em 817, o papa Pascoal transferiu os corpos de 2.300 mártires de cemitérios para esta igreja. Quando o papa Bonifácilo IV converteu o Panteon em uma igreja cristã em mais ou menos 609, “vinte e oito carretas carregadas de ossos sagrados das Catacumbas foram descarregadas em uma bacia de pórfiro abaixo do altar-mor”.
Para se consagrar o terreno e o prédio de uma igreja, exigia-se que se colocasse debaixo dela ossos ou outras relíquias. A Catedral de Wittenberg, à porta da qual Lutero afixou suas famosas “Noventa e Nove Teses”, tinha 19.000 santas relíquias. Os bispos foram proibidos pelo segundo Concílio de Nicéia em 787 de dedicar um edifício se não houvesse qualquer relíquia presente; a penalidade para fazer isso era a excomunhão.
Nas lendas antigas, quando Nimrode, o falso “salvador” da Babilônia morreu, seu corpo foi dividido junta por junta – e as partes foram enterradas em diferentes lugares. Quando ele foi “ressuscitado”, tornando-se o “deus-sol”, foi ensinado que estava agora em um corpo diferente, tendo deixado para trás os membros do velho corpo. Isto está em contraste com a morte do verdadeiro Salvador, Jesus Cristo, de quem foi profetizado, “Nenhum dos seus ossos será quebrado” (Jo 19.36) e que ressuscitou no verdadeiro sentido da palavra. A ressurreição de Cristo resultou em um túmulo vazio, nenhuma parte do seu corpo tendo sido deixada para trás para servir de relíquia.
Na velha religião dos mistérios, os diferentes locais onde se acreditava que os ossos do seu deus estavam enterrados, eram considerados sagrados – “consagrados” por um osso. “O Egito estava coberto com sepulcros de seu deus martirtizado; e muitos tinham uma perna ou um braço ou um crânio, todos registrados como genuínos, os quais eram exibidos nos locais de sepultamento rivais para a adoração dos fiéis egípcios”.
A influência do Egito sobre os filhos de Israel é evidenciada na fabricação do bezerro de ouro. Desde que o Egito era um lugar de relíquias multiplicadas, a sabedoria de Deus no sepultamente secreto de Moisés é compreensível (Dt 34.6). Ninguém sabia o lugar do seu sepultamento e não se podiam fazer peregrinações sagradas à sua tumba. Anos mais tarde, a serpente de bronze que Moisés fizera foi chamada de “Neustã” e foi adorada como uma relíquia sagrada pelos israelitas (2 Rs 18.4). Se tal idolatria foi praticada com algo que Moisés fizera, quão mais profundamente eles teriam entrado na idolatria, se possuíssem algum dos ossos dele.
Talvez seja desnecessário dizer que o uso de relíquias é muito antigo e não se originou com o cristianismo. A The Catholic Encyclopedia afirma corretamente que “o uso de alguns objetos, notadamente parte do corpo ou roupas, permanecendo como um memorial de um santo que partira, e à veneração de relíquias e, de fato, até certo ponto, um instinto primitivo, associado com muitos outros sistemas religiosos além do cristianismo”. Se Cristo e os apóstolos não usaram relíquias, mas seu uso era conhecido antes do cristianismo e entre outras religiões, não temos nós outros exemplos de uma idéia pagã cristianizada?
Não vemos relíquias como algo que tem parte na verdadeira adoração, pois “deus é Espírito, e importa que aqueles que O adoram o adorem em espírito e em verdade (Jo 4.24). Alguns dos ossos que já foram aclamados como ossos de santos, têm sido expostos como ossos de animais. Na Espanha, uma catedral certa vez foi apresentada como o que se dizia ser parte de uma asa do anjo Gabriel quando ele visitou Maria. Sob investigação, contudo, descobriu-se que era uma magnífica pena de avestruz. Não é necessário laborar muito sobre esta questão. A própria The Catholic Encyclopedia reconhece que muitas relíquias são duvidosas. “Muitas das mais antigas relíquias devidamente exibidas para veneração nos grandes santuários da cristandade ou mesmo na própria Roma, deverão ser agora pronunciadas como certamente espúrias ou abertas a graves suspeitas... Dificuldades deveriam ser levantadas urgentemente contra a suposta coluna da flagelação” venerada em Roma na Igreja de São Praxedes e contra muitas outras relíquias famosas”.
Como, então, é explicada esta discrepância? A The Castholic Encyclopedia continua: “... nenhuma desonra será cometida contra Deus, pela continuação de um erro que tem sido aceito em perfeita boa fé por muitos séculos... Daí existe justificativa para a prática da Santa Sé em permitir que o culto de certas antigas relíquias duvidosas continue”. Mas, novamente, apontaríamos que a verdadeira adoração é em espírito e em verdade – não pela continuação de um erro. Mesmo que tivéssemos um dos cabelos de Maria, ou um osso do apóstolo Paulo, ou as vestes de Jesus, Deus se agradaria com estas coisas sendo colocadas como objeto de culto? De acordo com o exemplo da serpente de bronze de Moisés, Deus não se agradaria. Podemos somente perguntar: se não haveria virtude real no verdadeiro cabelo, osso, ou vestido, quando menos poderá existir mérito em relíquias que se sabe que são falsificações?
Fonte: “Babilônia: A Religião dos Mistérios” (Antiga e Moderna) – Ralph Woodrow
Nota: As relíquias continuem:
“Originalmente eram os restos mortais dos mártires da fé que, no lugar da sepultura, passaram a ter veneração a eles referida. Depois também se veneraram as relíquias dos confessores da fé e de outros fiéis com fama de santidade. Perante o perigo de profanação dos túmulos pelos povos bárbaros, muitas relíquias foram levadas para lugares seguros; e começaram a trocar-se entre Igrejas relíquias dos seus santos. Tal costume acentuou-se com as Cruzadas, que trouxeram para o Ocidente muitas relíquias de santos orientais. O desejo muito generalizado de possuir relíquias levou ao comércio de falsas relíquias, que a Igreja sempre condenou, com sucesso relativo, o que deu argumentos às críticas dos reformadores protestantes, levando o Conc. de Trento a defender o culto das r., mas com a condição de serem autênticas ou de serem autenticadas. As formas tradicionais do culto das r. são a exposição, as procissões e, mais tardiamente, a bênção com elas (à semelhança da bênção com o SS. Sacramento). A reforma litúrgica do Conc. Vat. II aboliu a obrigatoriedade de relíquias nos altares (nomeadamente nas “pedras de ara”), embora recomende a colocação de r. autênticas na base dos altares (CDC 1237,2). Não é permitido vender r., nem transferir ou alienar r. insignes ou de grande devoção do povo, sem autorização da Santa Sé. São particularmente insignes os instrumentos da Paixão de J. C., partes do santo lenho, da coroa de espinhos, os cravos e, se for autêntico, o *sudário de Turim” (Enciclopédia Católica Popular - http://www.ecclesia.pt/catolicopedia).
Airton Costa