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30 de maio de 2012

Razões e consequências da guerra cultural no Brasil


por Valmir Nascimento 
[Artigo publicado no Mensageiro da Paz - Abril/2012]
 Estamos em meio a uma guerra silenciosa. Não se trata de um embate internacional, civil ou étnico, mas sim cultural. Um conflito travado entre os adeptos dos principais sistemas de ideias que movem a sociedade e que apresentam formas diferentes de ver o mundo, compreender a vida e definir o que é certo ou errado, justo ou injusto.
Por muito tempo, essa tensão social foi representada pelo embate entre o comunismo e o capitalismo, mas depois da queda do muro de Berlim tal disputa perdeu completamente o seu sentido. Como escreveu o ex-professor de Harvard, Samuel Huntington, em seu livro “O choque das civilizações”, no final da década de 80 o mundo comunista desmoronou e o sistema internacional da Guerra Fria virou história passada. Com isso, Huntington previu uma reconfiguração da política mundial seguindo linhas culturais e civilizacionais. Segundo ele, os conflitos mais abrangentes, importantes e perigosos não se dariam entre classes sociais, ricos e pobres, ou entre outros grupos definidos em termos econômicos, mas sim entre povos pertencentes a diferentes entidades culturais e religiosas. Huntington então vislumbrou um conflito entre as civilizações do mundo ocidental e o mundo islâmico.
Ocorre que Huntington não chegou a prever o choque cultural dentro do próprio Ocidente, entre os defensores da ética oriunda do modelo judaico-cristão e os adeptos do liberalismo e do relativismo moral. E é exatamente sobre esta guerra cultural que estamos falando. Mais especificamente sobre o choque entre a cosmovisão cristã e o pensamento liberal.
O epicentro do conflito entre os cristãos e os liberais reside exatamente nas concepções divergentes sobre questões éticas. E esse tipo de discussão tem uma influência decisiva na vida política, econômica e jurídica do país. Os debates que envolvem critérios de justiça, distribuição de renda, se o Estado deve ser mínimo ou de bem estar social, se o aborto, a pena de morte, o casamento homossexual e a descriminalização das drogas devem ser condutas aceitas, são temas que, invariavelmente, passam pelo crivo dos fundamentos ético-morais que norteiam a sociedade.
Hoje, porém, estes fundamentos estão transtornados (Sl. 11.3). O pensamento liberal defende que as pessoas têm o direito de fazer o que quiser com aquilo que lhes pertence, desde que sejam respeitados os direitos dos outros de fazer o mesmo. Outro professor de Harvard, Michael J. Sandel, em seu livro “Justiça”, explica que uma das principais características deste sistema de pensamento é a rejeição da legislação sobre questões morais. Os libertários são contra a aprovação de leis que promovam noções de virtude ou para expressar as convicções morais da história.
Para agravar ainda mais a concepção liberal, o ideal pós-moderno advoga a inexistência de uma verdade absoluta, capaz de estabelecer regras universais para todos os homens. Para eles, “o que é certo para nós talvez não o seja para você” e “o que está errado em nosso contexto talvez seja aceitável ou até mesmo preferível no seu”.
A partir deste cenário, não é difícil entrever os motivos para a guerra cultural. Ao contrário da pós-modernidade e do liberalismo, a cosmovisão cristã é alicerçada em uma verdade absoluta, revelada por Deus por meio das Escrituras Sagradas.  A verdade é o fundamento do pensamento cristão; a viga mestra das suas doutrinas. E se há uma verdade absoluta, há também um padrão ético universal a ser seguido por todos os homens (Rm 2.14-15). Foi baseado neste padrão ético que o cristianismo influenciou decisivamente a sociedade, sendo responsável pelos principais fundamentos de justiça, igualdade e liberdade.
O secularismo que varre a Europa e os Estados Unidos tem contribuído ainda mais para o avanço desta guerra cultural. Sob o pretexto do laicismo (separação entre Estado e religião), os defensores da visão bíblica estão sendo hostilizados por defenderem valores tradicionais históricos. No Brasil este conflito também existe. Durante palestra realizada no Fórum Social Mundial, em Porto Alegre, em janeiro deste ano, Gilberto Carvalho, atual secretário-geral da Presidência da República, disse que o Estado deve fazer uma disputa ideológica pela “nova classe média”, que estaria sob hegemonia de setores conservadores. “Lembro aqui”, continuou Carvalho, “sem nenhum preconceito, o papel da hegemonia das igrejas evangélicas, das seitas pentecostais, que são a grande presença para esse público que está emergindo”. Embora tenha pedido desculpas posteriormente, em razão de várias manifestações dos evangélicos, o pronunciamento de Gilberto Carvalho descortina o atual embate cultural dentro da sociedade brasileira.
            O crescimento dos evangélicos e a saída da esfera privada para discutir assuntos de interesse público, como o aborto, a união homossexual e a descriminalização das drogas, por exemplo, são alguns dos fatores que tem desencadeado o embate. Isso porque gera uma contrapartida dos liberais que, incomodados com o avanço do “conservadorismo”, tentam de todo modo neutralizar os debates sobre questões éticas, rotulando-os de puramente religiosos.
A tentativa dos liberais de frear a manifestação dos evangélicos não é um golpe somente contra os religiosos, mas contra a própria Constituição Federal, que estabelece que todos são iguais perante a lei e que ninguém  será privado de direitos por motivo de crença religiosa ou de convicção filosófica ou política. Um Estado Democrático de Direito pressupõe a possibilidade de debates e discussões livres pelos vários grupos que compõem a sociedade. Abafar a voz dos “conservadores” constitui-se na instauração de um Estado totalitário, que tenta impor coercitivamente uma ideologia liberal.
O argumento de que em um Estado laico os religiosos não podem ter espaço no ambiente público é um grande embuste; uma verdadeira deslealdade intelectual. A discussão do que é justo ou injusto, certo ou errado, são questões que não dizem respeito apenas à maneira como os indivíduos devem tratar uns aos outros. Elas também dizem respeito a como a lei deve ser e como a sociedade deve se organizar. E essa discussão parte do debate sobre a Ética, também chamada de filosofia moral. E assim como as várias teorias existentes (liberalismo, utilitarismo, relativismo) o pensamento cristão também tem a sua própria concepção, e como tal necessita ter lugar à mesa de discussões públicas.
Ao não reconhecer esse direito, o Estado corre o risco de voltar a praticar a perseguição contra os cristãos do século I. Uma perseguição ideológica, sem derramamento de sangue, mas igualmente perigosa.
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