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19 de abril de 2008

O Primeiro culto realizado no Brasil, e os primeiros mártires


No dia 10 de março de 2007, completaram-se 450 anos que, na ilha de Villegaignon, então Forte de Coligny, se celebrou o primeiro culto evangélico, segundo o rito calvinista, em terras do Brasil e, aliás, da América do Sul.
A instâncias de Villegaignon, o grande reformador Calvino e a Igreja de Genebra prepararam uma leva de huguenotes para virem se estabelecer na, então, França Antarctica, afim de solidificar e desenvolver a colonização desta parte da América que deveria ser, também, um lugar de refugio para os protestantes perseguidos na França e demais paises da Europa.
À frente desse bando de heróis da fé, a constituírem OS PIONEIROS DAS MISSÕES, entre os silvícolas americanos, fora posto o venerando Felippe de Corguilleray, senhor du Pont, amigo e visinho do grande almirante Gaspar de Coligny, quando estivera em Chastillon sur Loing. Acompanhavam-no dois ministros evangélicos: o ancião Pierre Richier, de cinqüenta anos de idade, e Guillaume Chartier, mais moço, de trinta anos de idade.
Além desses dois pastores, formados em teologia, profundamente conhecedores das Sagradas Escrituras, participaram da viagem os seguintes aspirantes ao ministério e profissionais em varias artes: Pierre Bourdon (excelente torneiro), Matthieu Verneuil, Jean du Bourdel, André la Fon (alfaiate), Nicolas Dénis, Jean Gardien (perito retratista), Martin David, Nicolas Raviquet, Nicolas Carmeau, Jacques Rousseau e Jean de Lery, o clássico historiador desta viagem e da estadia desses destemidos missionários evangélicos no Brasil.
Tendo essa comitiva partido de Genebra a 16 de setembro de 1556, demandou, primeiramente, a Chastillon sur Loing, onde os huguenotes tiveram a oportunidade de encontrar-se com o grande almirante Coligny. Daí seguiram para Paris, onde se demoraram um mês, e onde outras pessoas se agregaram à expedição.
De Paris passaram a Rouen e desta a Honfleur, porto de mar, na Normandia, de onde, depois de quase um mês, a 19 de novembro de 1556, embarcaram, em demanda do Brasil. Cumpre, porém, notar que esta expedição não se compunha somente de protestantes, como tantas vezes se tem feito crer. Na sua maioria absoluta era composta de católicos romanos.
Foi Bois le Conte, sobrinho de Nicolas Villegaignon, quem à custa do rei, organizara a frota que trouxe os huguenotes ao Brasil. Esta frota se compunha de três navios: o Petite Roberge comandado por Bois le Conte, então aclamado vice-almirante, e que trazia cerca de 80 pessoas, inclusive soldados e marujos; o Grand Roberge, que trazia 120 pessoas e por capitão o sr. de Sainte Marie, apelidado Espine, e o Rosee, assim chamado em razão do que o comandava, e que trazia a bordo 90 pessoas, inclusive 6 rapazes, que vinham para aprender a língua brasileira, e cinco donzelas, dirigidas por uma matrona, que foram as primeiras mulheres francesas que arribaram a estas plagas sul-americanas. Eram, portanto, ao todo, 290 pessoas, das quais somente 16 eram protestantes calvinistas!
Entretanto, os atos de pirataria realizados por le Conte, muito bom católico romano, e de seus marinheiros, também católicos, como expressamente declara Lery, têm sido atribuídos aos calvinistas! Na ocasião, entretanto, é certo que Lery, e com ele os protestantes, francamente os condenaram!

«E cumpre (pois vem de propósito), diz Lery, que diga aqui de passagem, que, neste primeiro encontro de navio, vi praticar no mar o que mais freqüentemente também se pratica em terra, a saber: que aquele que tem armas em punho e é mais forte supera e dá leis ao companheiro. Verdade é que os srs. marinheiros, fazendo arriar velas e se aproximar dos míseros navios mercantes, alegam ordinariamente que andam por muito tempo, forçados pelas tempestades e calmarias, sem poder tomar terras nem porto, e estão no mar necessitados de viveres, de que pedem para ser supridos, mediante pagamento,
Se, porém, sem este pretexto podem por pé a bordo do vizinho, não pergunteis se vão impedir o navio de afundar-se; ali o descarregam de tudo quanto lhes parece bom e proveitoso. E, se porventura alguém adverte, (como de fato sempre o fazíamos) que nenhuma ordem existe para assim saquearem indiferentemente amigos e inimigos, respondem com o estribilho comum dos nossos soldados de terra em caso semelhante, dizendo ser de guerra e de costume, e que, portanto, desempenha o seu ofício quem segue os estilos» (Lery, Historia de uma viagem á terra do Brasil, cap. II, §§ 5.o e 6.o)
Só a 7 de março de 1557, demandara a frota de Bois le Conte à barra do Rio de Janeiro, e somente a 10 do mesmo mês, conseguiu definitivamente desembarcar esta celebre expedição, no Forte Coligny.
Imediatamente, du Pont, acompanhado dos ministros Pierre Richier e Guillaume Chartier, se apresentou diante de Villegaignon, declarando-lhe a causa principal que trouxera os cristãos evangélicos às terras brasileiras, que outra não fora senão atender às solicitações do sr. almirante em fundar, neste país, não só a Igreja Reformada mas um refúgio aos que fossem, na Europa, perseguidos pela intolerância inquisidora do Papado.
Ao que respondeu o sr. Villegaignon: «Quanto a mim, tenho na verdade desde muito tempo, e de todo o meu coração, desejado tal coisa e os recebo de mui boa vontade em tais condições; até porque desejo que a nossa igreja tenha fama de ser a mais bem reformada de todas. Desde já quero que os vícios sejam reprimidos, que o luxo do vestuário seja reformado e, em suma, que do meio de nós se remova tudo quanto nos possa impedir de servir a Deus.»
«Depois», acrescenta Lery, «levantando os olhos ao céu e juntando as mãos, disse:
— Senhor, rendo-Te graças de me haveres enviado o que desde tanto tempo tenho ardentemente pedido.
«E de novo aos nossos companheiros disse: — «Meus filhos (pois quero ser vosso pai) assim como Jesus Cristo neste mundo nada fez para Si, e tudo fez por nós, assim também eu (esperando que Deus me conserve a vida até que nos fortifiquemos neste país e possais dispensar-me) tudo quanto pretendo fazer, aqui, é para todos aqueles que vêm ao mesmo fim que vós viestes. Delibero constituir aqui um refugio para os pobres fieis, que forem perseguidos em França, na Espanha, e em outra qualquer parte de além-mar, afim de que, sem temor do rei, nem do imperador, ou de outras potestades, possam servir a Deus com pureza, conforme a Sua vontade.» (Opus cit. cap. Vl, §§ 1 e 3)
Proferidas estas palavras, reunindo-se todos numa sala que havia no meio da ilha, e depois que Pierre Richier invocou a presença do Divino Espírito Santo, cantou-se o SALMO QUINTO do qual reproduzimos a tradução, em poesia portuguesa, feita pelo muito ilustre poeta Padre Caldas, e que se acha em nosso hinário – CâNTICOS SAGRADOS – sob o número 2.
Minhas palavras atende,
O’ Senhor, e a meus gemidos
Inclina os Teus ouvidos ;
O’ meu Deus, meu Soberano,
A minha oração Te rende :
Tu m’escutas, mal o humano
Vê luzir, no etéreo posto,
D’aurora o mimoso rosto.
Na grandeza confiado
De Teu terno coração,
Minha humilde adoração
Eu irei no templo Teu
Ofertar-Te, penetrado
De respeito e de temor.
Ah! Deus meu, vem me guiar
Vem meus passos segurar.
No peito que em Ti confia,
Tu, Senhor, habitarás ;
De prazer o embeberás,
Sempiterno e sublimado;
Nadando em gloria á porfia
E por Ti abençoado ;
E, qual escudo, o defende
Teu braço que tudo rende.
Após este cântico, Richier fez um eloqüente sermão, tomando por suas as seguintes palavras do Salmo 27, versículo 4, segundo a excelente tradução do ex-Padre – Santos Saraiva: — Uma coisa tenho pedido a JEHOVAH a qual eu buscarei; que assista eu na casa de JEHOVAH, todos os dias de minha vida, para de JEHOVAH contemplar o esplendor, e recrear-me em Seu templo.
Durante a prédica, Villegaignon não cessava de juntar as mãos, levantar os olhos para o céu, dar altos suspiros e fazer vários gestos que a todos causavam admiração. Para o venerando Richier, Villegaignon era um novo Paulo!
O almirante ordenou que em todas as noites se realizasse o serviço divino. Aos domingos, houvesse culto e pregação do Santo Evangelho duas vezes, e os sacramentos fossem administrados conforme a pura Palavra de Deus.
Quanto à disciplina, exigia que fosse severamente aplicada aos delinqüentes.
De conformidade com estas ordens, desde a memorável QUARTA-FEIRA, DEZ DE MARÇO DE 1557, começaram a ecoar sobre as ondulantes e esmeraldinas águas da formosíssima Baia de Guanabara, que eles então chamavam RIO DE GÈNÉVE, os sagrados cânticos arrancados de fervorosos peitos a cultuarem as esperanças de vida eterna, segundo os sacratíssimos ensinamentos de Jesus Cristo.
Ah! foram, porém, por pouco tempo, porque, desde logo, a hipocrisia, desmascarando-se, a pouco e pouco, veio perturbar, afligir e banhar em sangue este abençoado solo!
A 21 de março deste mesmo ano de 1557, celebrou-se pela primeira vez, segundo o rito evangélico, a Santa Ceia, fazendo Villegaignon, por duas preces ao Deus Altíssimo, a profissão de sua fé, depois do que, de joelhos, recebeu das mãos do venerando Pastor Pierre Richier os sagrados elementos da Comunhão.
«E assim", assevera o historiador Lery, « abjurou o almirante suas crenças no Papismo.» Por esta ocasião, também abjurou o Romanismo um FRADE chamado Jean de Cointac, que fora estudante da Sorbonne, e que se dizia chamar Hector.
Chagara este clérigo em companhia dos huguenotes e, provavelmente, a eles se ajuntara quando, em Paris, permaneceram cerca de um mês.
Foi justamente este Frade Cointac o fomentador de toda a discórdia, como expressamente o declara Villegaignon, pois suscitara questões sobre a consagração de vasos especiais para administração do Sacramento Eucarístico; sobre ser ou não o pão fermentado; sobre o uso de vestes sacerdotais; sobre o uso de sal, azeite e saliva, na administração do Batismo; sobre a significação das palavras sacramentais, si importavam ou não a consubstanciação ou transubstanciação, etc. Nestes debates, Villegaignon acabou por tomar proeminente parte, a ponto de completamente romper com os calvinistas, não convindo mesmo, como combinara, esperar resposta da consulta enviada a Calvino por intermédio do Pastor Guillaume Chartier.
Entretanto, a 17 de maio deste mesmo ano de 1557, o ex-FRADE Jean de Cointac desposou uma das donzelas que vieram de França, parente do negociante La Rouquette, de Rouen. Tendo este negociante falecido, algum tempo depois da chegada dos huguenotes, deixara como sua universal herdeira aquela moça, sua sobrinha. O ex-FRADE, cobiçando a moça e a fortuna, resolveu desposá-la! Celebrou a cerimonia religiosa deste primeiro casamento de um ex-FRADE, no Brasil, o mesmo venerando Pastor Richier.
Apesar das novas relações no lar e no comércio, Cointac persistiu em suas controvérsias, a ponto de romper com o mesmo Villegaignon, que o constrangeu a sair do seu Forte, pouco tempo depois de seu enlace matrimonial «como sendo uma boca inútil "!
Este ex-FRADE Cointac, no dizer de Lery e de Crespin, tornou-se implacável inimigo dos calvinistas e, o que é mais interessante – e descoberta mui recente – tornou-se o traidor não só de Villegaignon, mas também de sua Pátria! Foi provavelmente em agosto, ou setembro de 1557, que o ex-FRADE Jean Cointac, fora expulso do Forte Coligny. Ainda que sofrendo todas as humilhações possíveis, os huguenotes ali permaneceram até o mês de outubro, quando resolveram também romper definitivamente com Villegaignon, que não mais podia igualmente tolerá-los.
Passados para o continente, nas fraldas do morro do Castelo, então chamado morro de Henri, no lugar denominado Olaria – Briqueterie – domiciliaram-se os huguenotes em uns casebres, que os operários franceses haviam construído, quando para ali se dirigiam aos afazeres da pesca. E ali aguardaram a chegada de embarcação que os pudesse transportar para a Europa, o que somente conseguiram a 4 de janeiro de 1558, a bordo de um velho navio chamado Jacques.
Assentira Villegaignon que os huguenotes regressassem à França, porém o fez com o mais perverso intento, porque, enviando por eles um documento devidamente lacrado, para ser entregue às autoridades daquele país, nele denunciava os seus portadores como perigosos hereges que deviam sofrer o ultimo suplício!
Depois de sete ou oito dias de viagem, o Jacques começou a fazer água, e por tal modo ameaçava ir ao fundo, que o seu comandante alvitrou a du Pont e seus companheiros regressarem ao Brasil.
Como du Pont manifestasse estar decidido a seguir viagem, somente cinco desventurados calvinistas se resolveram a voltar para a baia de Guanabara, e foram os seguintes: Jean du Bourdel, Matthieu Verneuil, Pierre Bourdon, André la Fon e Jacques le Balleur.
Aqueles, depois de penosíssima viagem, chegaram à França, onde foram bem recebidos pelas autoridades que eram simpáticas à Reforma, e, assim, ficaram livres da ultima traição de Villegaignon – desde então chamado o CAIM DA AMÉRICA!
Estes, que retrocederam, depois de vagarem muitos dias à mercê das ondas, sofrendo as torturas da fome, chegaram ao continente, onde foram hospitaleiramente recebidos pelos selvagens. Demandaram, depois, o aldeamento dos franceses, que estavam em terra firme, os quais instaram para que não comparecessem perante Villegaignon. Não obstante estes conselhos, se apresentaram ao almirante. Este os recebeu, aparentando bom grado, e até permitindo-lhes que ficassem no continente.
Doze dias depois, a 8 de fevereiro, suspeitando que fossem traidores e ali representassem o papel de espiões de du Pont e Richier, não tendo, porém, coragem de justiçá-los por tais suspeitas, exigiu Villegaignon que eles fizessem por escrito, dentro de doze horas, uma precisa e clara profissão de fé. Na excelente obra recém publicada pelo sr. Domingos Ribeiro – a Tragédia de Guanabara, os leitores encontrarão a narrativa completa desses tristíssimos acontecimentos.
Os franceses domiciliados em terra ainda insistiram para que eles não dessem por escrito tal confissão, pois seria o móvel para Villegaignon cevar sua sanguisedenta tirania. Não obstante tais conselhos, quatro deles resolveram escrever a confissão, incumbindo do trabalho de responder aos artigos propostos por Villegaignon – o mais velho e instruído dos quatro – Jean du Bourdel, a cuja assinatura acrescentaram os seus nomes: Matthieu Verneuil, Pierre Bourdon e André la Fon. Deixou de assinar esta confissão o grande heróis da fé – Jacques le Balleur, cujo nome completo supomos ser JEAN JACQUES LE BALLEUR.
Tendo em suas mãos aquela confissão plena de fé evangélica, Villegaignon, a 9 de fevereiro de 1558, mandou prender e martirizar a Jean du Bourdel, Matthieu Verneuil e Pierre Bourdon, os quais, após o estrangulamento, ainda semi-mortos, tendo as mãos e os pés atados, foram lançados nas águas do mar junto ao recife do Forte de Coligny! E, assim, ficou transformada a mais bela baia do mundo em preciosíssimo relicário dos primeiros mártires da plena liberdade de consciência e do Evangelho, na América do Sul!
André la Fon foi poupado, visto ter prometido não se conservar obstinado em erros doutrinários, uma vez provados como tais, pela Sagrada Escritura. Da expedição chegada a 7 de março de 1557, o ultimo huguenote, que sofreu o martírio, foi JACQUES LE BALLEUR, enforcado no Rio de Janeiro, dez anos depois, em 1567, quando se lançaram os fundamentos desta Capital.
Morreram esses nobres cristãos, mártires da intolerância e do fanatismo, mas o Cristianismo não morreu! E hoje, graças a constância dos pegureiros da cruz de Cristo, nesta cidade, batizada com o sangue dos huguenotes, estão estabelecidas dezenas de Igrejas Reformadas, há milhares de crentes evangélicos e levantam-se inúmeros templos cristãos como vitoriosos marcos do triunfo glorioso da liberdade de consciência e da plena liberdade religiosa!
Graças a Deus! – A Verdade triunfa!

(Extraído do Apêndice do livro "O MARTYR LE BALLEUR" Álvaro Reis, editado em 1917, escrito em português arcaico, e adaptado por Pedro Corrêa Cabral, em abril de 2007)
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