Os crentes eram discriminados e perseguidos. Os crentes eram convertidos e conheciam o Plano de Salvação e... os crentes conheciam a Bíblia. Aliás, depois dos epítetos de "novas-seitas" e "bodes" eles eram conhecidos como "os Bíblias". "Fulano é um Bíblia...". Isso porque assim que alguém se convertia, a primeira coisa que fazia era comprar uma Bíblia.
O Brasil era um país de uma imensa maioria de analfabetos, e raríssimos católico romanos possuíam uma Bíblia (que eram caras). As edições protestantes, que começaram a chegar regularmente ao Brasil há exatos duzentos anos, com a vinda da Família Real, era a da tradução de João Ferreira de Almeida, e de capa preta. Como ninguém tinha automóvel, lá iam heróicos e orgulhosos, os homens de paletó e as mulheres bem vestidas, com sua reluzente Bíblia de capa preta debaixo do braço, sob os olhares e os murmúrios de censura dos que os viam passar.
Gente que não sabia ler levava a Bíblia, assim mesmo, como símbolo, e procuravam aprender a ler, para poder ler a Bíblia. Os novos convertidos eram submetidos, imediatamente, a um curso intensivo sobre as Sagradas Escrituras, aprendendo a distinguir Antigo de Novo Testamento, capítulo de versículo, e livro histórico de livro poético, além de memorizar versículos considerados importantes para o evangelismo e para a santidade. Nos cultos de estudos bíblicos, havia uma espécie de "gincana", para ver quem achava determinado versículo primeiro.
As edições protestantes da Bíblia eram queimadas em praça pública por beatos enfurecidos, estimulados por sacerdotes radicais. Tais Bíblias eram consideradas "falsas", e muita gente se converteu por comprá-las por mera curiosidade. Houve casos de que os chamados "colportores" (vendedores itinerantes de Bíblias) que se adentravam no interior do país montados em mulas, deixavam uma Bíblia em um povoado, vila ou cidade, e, regressando um ou dois anos depois, encontravam uma Igreja funcionando, sem qualquer vínculo com organizações, fruto da mera leitura do texto sagrado.
Quando se cantava "Minha Bíblia, meu prazer, meu tesouro quero ter" ou "Enquanto ó Salvador teu Livro eu ler, meus olhos vem abrir, pois quero ver", os crentes davam certo...
O que acontecia, então, quando uma pessoa se convertia? Pegava-se "no laço" e a fazia membro da Igreja no dia seguinte? Longe disso. Existiam as classes especiais de estudo, denominadas de "Classes de Novos Convertidos", ou "Classes de Catecúmenos", com uma duração mínima de seis meses, de presença obrigatória para os novos crentes. Ali eles estudavam o Plano de Salvação, as Sagradas Escrituras, as Doutrinas Básicas da Fé Cristã, Ética e Características da Denominação (inclusive o compromisso de contribuir com o dízimo), enquanto eram observadas em seu novo comportamento.
Somente depois desse período eram examinados por conselhos, comissões ou assembléias (conforme a prática denominacional) e eram batizadas e/ou faziam a Pública Profissão de Fé/Confirmação, um rito de suma importância para a nova criatura, que se tornava membro pleno da nova comunidade de fé.
Nada de pressa, nada de superficialidade, nada de preocupação com números. O resultado era a estabilidade, as pessoas ficavam na Igreja, não havia "rotatividade".
Depois de professo, o novo crente se tornava aluno regular de uma das classes da Escola Bíblica Dominical, onde estudaria as Escrituras pelo resto de sua vida. As "uniões de treinamento" (homens, mulheres, jovens) também tinham a sua literatura, e faziam a sua parte na educação continuada dos crentes. Estes eram estimulados à leitura devocional diária da Bíblia, e a lerem livros evangélicos, além de assinarem os jornais oficiais das suas denominações ("O Cristão", dos congregacionais; "O Jornal Batista", "O Brasil Presbiteriano", "O Estandarte", Episcopal etc.), para se manter informado sobre o que acontecia em seus arraiais.
No campo da apologética, havia palestras e textos que ensinavam como diferenciar o Protestantismo do Catolicismo Romano, ou as diferenças entre os diversos ramos do Protestantismo. Isso não requeria alta escolaridade (algo muito raro na época), mas era usual para o crente mais simples.
Com um lastro de conhecimento desses, os crentes davam certo...
Naquele tempo o cenário religioso brasileiro era mais claro e menos "plural": havia as diversas expressões do catolicismo romano (mais de 90% da população), o espiritismo kardecista e os cultos afro-brasileiros (chamados, em conjunto de "macumba"), além de um ou outro "livre-pensador" ou seguidor do Positivismo de Augusto Conte. Os protestantes de migração (luteranos alemães na zona rural, anglicanos britânicos nos centros urbanos) já estavam aqui desde a Regência, mas "não ofendiam ninguém", pois não evangelizavam os brasileiros. Aí, na segunda metade do século XIX chegaram as Igrejas históricas de missão (congregacionais, presbiterianos, batistas, metodistas e anglicanos/episcopais), que foram os únicos entre 1855-1909.
Diante de adversários em comum, e a partir de uma base de crenças em comum (todos eram evangélicos) se criou a consciência de se pertencer a um mesmo "povo": todos eram evangélicos ou "crentes", antes de serem batistas ou presbiterianos. Rivalidade sempre houve, mas em um nível menor. Todos se sentiam um. Depois do Congresso do Panamá, de 1916, se promoveu a produção conjunta de material para a Escola Bíblica Dominical, e, entre 1934-1964, a Confederação Evangélica Brasileira (CEB) aglutinava os protestantes, promovia eventos, imprimia textos, e, tanto o "Dia da Bíblia" (segundo domingo de dezembro) como o "Dia da Reforma" (31 de outubro) eram nossos "feriados protestantes", comemorados por todos.
Havia um respeito e uma ética nos relacionamentos, e não uma competição selvagem. Instituições unificadas como "cemitérios protestantes" ou "hospitais evangélicos" eram demonstrações do esforço de todos.
O importante é que todos consideravam o outro como um "salvo", um "evangélico", um "crente", um dos nossos. Havia um "orgulho santo", meio judaico, de pertencermos todos ao Israel de Deus, ao Povo da Nova Aliança, além do fato de que todos eram igualmente discriminados e chamados de "bodes". Quando os "bodes" eram unidos, os crentes davam certo...
Os crentes, desde o início, formavam um povo que cantava. Dona Sarah Kalley, esposa do primeiro missionário congregacional, o pastor e médico escocês Robert R. Kalley, além de criar a primeira Escola Bíblica Dominical, em Petrópolis, foi a grande responsável pela primeira compilação de cânticos evangélicos, denominada de "Salmos e Hinos", usado por gerações e matriz de quase todos os cancioneiros protestantes do País.
Muitos hinos, com uma densidade de mensagem em sua letra, foram traduções da época da reforma, do pietismo, dos avivamentos, do movimento missionário, e, muitos foram compostos por autores brasileiros (Hinário Evangélico, Cantor Cristão, Harpa Cristã, e tantos outros). Havia hino para cada tema (fé, amor, arrependimento, conversão, santidade) e para cada ocasião (natal, páscoa, dia da reforma, funerais), o que reforçava a mensagem, adequados aos sermões. Canto de alegria, canto de quebrantamento, canto de apelo evangelístico, de forma congregacional, de corais ou de solos.
Muita gente foi tocada e se converteu pela via da música.
Ainda estão vivos dois dos grandes pioneiros das gravações de hinos, os cantores Feliciano Amaral e Luiz de Carvalho. No rádio, os dois primeiros programas foram "A Voz da Cruz", da Igreja Luterana (IELB) com o Reverendo Rodolfo Hasse, tendo como fundo o hino "Castelo Forte", e "A Voz da Profecia" da Igreja Adventista, com o Pastor Roberto Rabelo e o Quarteto Harmonia, com o hino "Servos de Deus a Trombeta Tocai: Jesus em Breve Virá".
O piano, o órgão e o violino foram os primeiros instrumentos.
Cada crente tinha seu(s) hino(s) favorito(s). As pessoas ficavam impressionadas com hinos cantados em funerais.
Como um povo que cantava sempre, com muita convicção, com harmonia melódica, e com letras com conteúdo (que você entendia quando cantada), os crentes tinham que dar certo.
Olhando as fotografias das primeiras Igrejas protestantes de missão no Brasil, se percebe uma maioria de homens. Era uma sociedade ainda patriarcal, de homens mais letrados e com mais tempo livre. Em situações de mudanças religiosas, há uma tendência de maior resistência por parte das mulheres. Por outro lado, os desdobramentos da ética protestante da santidade no mundo, pela ascese, o trabalho e a poupança teve um impacto dos mais significativos em um país escravocrata e aristocrata.
O alcoolismo, o tabagismo, a jogatina, as farras, os prostíbulos, a vida boêmia, onde se gastava o dinheiro e a saúde (da cirrose às, então, denominadas "doenças venéreas"), e se abalavam as relações familiares, eram deixadas para trás como algo "mundano", "da carne", "de satanás".
A nova religião ensinava o valor do estudo, do trabalho (inclusive o manual), os gastos responsáveis, a atenção à esposa e aos filhos, para que todos aderissem à mesma fé e fossem juntos para a Igreja ("eu e minha casa serviremos ao Senhor"), os cultos domésticos (inclusive evangelísticos).
O resultado, em nosso País, com as Igrejas históricas de missão, bem comprovou a tese de Max Weber. Houve uma mobilidade social, com cada geração sucessiva apresentando melhores níveis de escolaridade e classe social mais alta (inclusive com a ajuda das bolsas de estudo dos colégios protestantes). Reduzia-se a violência doméstica, com famílias mais ajustadas, maior dignidade da mulher, mantendo-se a liderança do homem.
Dentro das organizações internas das Igrejas as pessoas perdiam a timidez, e desenvolviam o associativismo e o espírito de liderança.
Essa ética favoreceu o surgimento da nova classe média e de uma classe trabalhadora qualificada, em um Brasil que se urbanizava.
A presença do protestantismo, pois, foi positivo para a família, para a saúde pública e para a economia. Era visível a diferença trazida por um Evangelho pessoal. Com mudanças existenciais como essa, os crentes davam certo...
Robinson Cavalcanti, bispo anglicano
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